Júlio Olivar
Editei durante cinco anos em Machado (MG) o “Siga em Frente”, jornal bem modesto e barulhento, próprio daqueles anos que pontuavam o fim de minha adolescência. Fundei-o quando tinha apenas 19 anos de idade, em 1992. Circulou por algum tempo como semanário, mas na maior parte do tempo foi um “devezenquantário”, publicado quando dispúnhamos de alguns “destões” para custear a impressão. Até que, em dezembro de 1997, tirei-o de circulação em definitivo. Era o fim da rebeldia juvenil.
E vim morar em Rondônia. Não obstante a polêmica que norteou as 150 edições do jornalzinho machadense, também busquei valorizar a cultura e, acima de tudo, a História machadense. Para tanto, muitas vezes passei longas horas fazendo anotações sobre documentos da Casa da Cultura ou velhos exemplares de jornais que fui ganhando da população; alguns deles tenho até hoje comigo. E não escrevi sobre tudo o que descobri. Quem sabe um dia.
No entanto, mais do que o acesso aos documentos, o que me atraiu nos tempos de Machado foi a possibilidade de conhecer de perto a história de pessoas muito ricas em suas vivências. Sempre que possível fui de encontro às personalidades que me atraíam à época. Outras conheci por força da casualidade. Dentre elas, tive a sorte de “descobrir” a escritora Anésia Sousa Ramos.
Encontrei-a exatamente no dia em que eu completava 24 anos de idade, em 14 de junho de 1997. Foi um presente a apenas cinco meses do fim do jornal. Eu estava passeando na estância de Atibaia, no interior de São Paulo, onde ainda hoje mora parte de minha família. Sem saber que no bairro Alvinópolis – onde brinquei durante a minha infância, quando visitava minha avó, tios e primos – morava a escritora Anésia, exatamente à rua Dr. Eurico Sousa Pereira, 205.
Meu saudoso tio Osório que me dissera quando soube que eu editava um jornal em Machado: - "Aqui perto mora uma escritora machadense, uma senhora muito simpática". Ele não se lembrava do nome dela. Fiquei curioso e minutos depois já estava a bater à sua porta, sem cerimônias, atraído pelo faro de repórter. Antes de chegar, perguntei na rua o nome da senhora que ali vivia, pois era imperativo dirigir-me a ela pelo nome. Até então, eu conhecia dona Anésia apenas pela boca de alguns velhos amigos machadenses – meus queridos Abel Faleiro e Hélio D’Andréa – e através dos seus escritos no extinto jornal "O Machadense", da década de 1960.
Ela recebeu-me com um sorriso desconfiado. Afinal, se confessava avessa a travar conhecimentos novos. Hesitou até eu mencionar “Machado”, a palavra mágica; seus olhos avivaram. E a hospitalidade mineira ditou o rumo do prosa que durou cerca de duas horas. Gravei nosso bate-papo e fotografei com a minha velha Zenit uma dona Anésia singela, que não fez questão de maquiagem e nem de uma roupa diferente da que já usava quando me abriu a porta.
Ela tinha elegância por natureza; e se impunha pela candura e um vocabulário rico, porém despretensioso. Em meio à conversa, deixou escapar algum desapontamento por não ter obtido o reconhecimento que almejou como romancista. Sonhou, sim, ser renomada nacionalmente. E, mesmo assim se referiu a Machado como "um cantinho do Brasil ao qual tanto amo e, jamais, nem por um dia, olvidei e estimei menos", mencionou: "Lá nunca deixei de ser a filha do seu Domingos e Dona Apolinária".
Dona Anésia formou-se em magistério no Colégio Imaculada Conceição, em Letras pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Machado e em História na cidade de Alfenas. Lecionou no Colégio São José, Imaculada Conceição, Escola Agrícola e na Escola Técnica de Comércio. Anésia sempre escreveu e conseguiu editar oito livros: Num Coração de Mulher, Aos Acordes do Violino, Calvário de Mãe, Brinquedos do Acaso, O Filho do Cacique, A Última Mentira, Flor do Asfalto e Retalhos D´Alma.
Solitária no segundo andar de um apartamento, onde embaixo morava uma sobrinha, dona Anésia convivia no crepúsculo de sua vida com velhos livros na estante, sobre a qual o calendário marcava aquele junho de uma década atrás, que eu nunca esqueci. Na parede, a flâmula do seu querido Corinthians e, por todos os cantos, figuras de José, Maria e o Menino Jesus, explicitando sua devoção ao catolicismo. Aliás, ela tinha uma formação conservadora, que se evidenciava em seus romances quando tratava de questões políticas, por exemplo.
Falei de dona Anésia na seção “Perfil" do jornal “Siga em Frente”. Em retribuição, recebi uma carta que mantenho como uma verdadeira relíquia. Ela iniciou a missiva escrita à máquina, datada de 7 de julho de 1997, com um "+" (simbolizando a cruz) e as iniciais J.M.J. (Jesus Maria José). Tratou-me como "generoso e amável" e logo na abertura demonstrou a alegria de se ver novamente no jornal: "Você recriou a minha desbotada figura". Um tanto gratificado pela "descoberta" daquela personagem interessantíssima ao meu prisma de 20 e poucos anos de idade, mantenho dona Anésia viva.
Os escritores, afinal, são imortais. Principalmente para os que tiveram a dádiva de tê-los conhecido em seu mundo de faz-de-conta, com sua máquina de datilografar, sua letra bem feita... Enfim, era ali que Anésia se transportava para os romances imorredouros à mercê da descoberta – como tesouros a serem burilados – por todos os machadenses. (N.R.: Anésia Ramos faleceu em Atibaia (SP) em 24 de setembro de 2004).
*Júlio Olivar é político e escritor; membro da Academia Vilhenense de Letras, autor dos livros “O Mistério do Cônsul” e “Ruas que andei”. Dirigente estadual do PCdoB, foi candidato a vice-governador de Rondônia, em 2006.
Belíssimo texto. Esse escritor continua vivificando personas e lugares. Dona Anésia ficaria feliz, caso ele desenvolva uma narrativa biográfica. Parabéns. Um texto muito sedutor.
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